03 janeiro 2011

Autoficcão

Uma noite, durante um jantar, Gyorgy Troyko, um amigo muito querido desde há mais de meio século, disse-me que eu deveria escrever minha autobiografia. “Mas sem mentiras, a verdade pura, sem esconder absolutamente nada.”

Não posso, querido amigo. Primeiro, porque ainda não tenho intenção de começar a esperar a morte e escrever a autobiografia á prenúncio do encontro com a Magra... Segundo, porque ainda pretendo realizar algumas coisas e, ao fazer um livro sobre minha vida, ao chegar ao fim, estaria sacramentando também um fim de ideais e de sonhos. Ainda é cedo para isso, penso e espero eu.

Depois, pedir a um romancista que não escreva mentiras é o mesmo que lhe pedir que não escrever uma linha sequer. Minha obrigação como escritor é fazer com que o leitor, no mínimo, compactue com as mentiras postas nas páginas do livro. Além do mais, que graça teria um romance que não contasse algumas boas mentiras?

Está certo... Haverá quem diga que uma autobiografia não é um romance. Porém, sem alguma ficção, que graça ela teria? Seria um texto plano, retilíneo, sem atrativos.

Esse jantar foi há quase quatro anos. E, na verdade, o Troyko estava certo, pelo menos em parte. Hoje, a tendência dos grandes romancistas, como por exemplo, Coetzee, é o que os críticos chamam de autoficção. Ou seja, contar uma história misturando-a com sua autobiografia. Em resumo, o bom amigo Troyko estava antevendo uma tendência quatro anos atrás.

Começo a pensar seriamente nisso, apesar de já ter posto, em alguns de meus romances, alguma coisa sobre minha vida.

De mais a mais, quanto a temer a visita da Magra, já começo a me conformar. Este ano que passou, 2010, foi muitíssimo duro e pesado para mim. Comecei esse ano andando normalmente e termino-o de muletas e cadeira de rodas. Também a antiga disposição para escrever arrefeceu e muito, mesmo porque não consigo ficar nem mesmo meia hora diante do computador. As dores da polineuropatia diabética não o permitem.

Quem sabe se tentar romancear minha vida, criar um personagem que seja meu alter ego, não me entusiasme novamente?

Claro que há episódios que só poderiam ser vividos por esse personagem misto de mim e de um super-herói. Em outros, eu teria de esconder certas características que tornariam as pessoas – outros personagens – facilmente reconhecíveis e isso será totalmente desaconselhável.

Porém, refletindo sobre tudo isso nas minhas tristes horas de dor e insônia, chego à conclusão que sim, que vale a pena arriscar. E que tenho eu a perder? Que mais tenho a realizar nesta vida, preso que estou às minhas precárias condições físicas?

Hoje pela manhã, neste início de 2011 que, espero, seja melhor, tomei a decisão: vou escrever essa autobiografia.

Mas não espere o Troyko que ela venha a ser como me aconselhou, sem mentiras. Terá de havê-las. Mas prometo que vou colocá-las de uma forma tal que o leitor não consiga perceber que são mentiras. Talvez esse seja o melhor livro que jamais escrevi. Talvez seja o pior. Não tem importância. O que interessa é que nele hei de abrir alma. Quem me conhece saberá distinguir pelo menos alguma coisa do que é verdade e do que não é.

Mas será o livro de minha vida.

A despeito de a Magra já estar começando a rondar a minha casa...

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03 janeiro 2011

Autoficcão

Uma noite, durante um jantar, Gyorgy Troyko, um amigo muito querido desde há mais de meio século, disse-me que eu deveria escrever minha autobiografia. “Mas sem mentiras, a verdade pura, sem esconder absolutamente nada.”

Não posso, querido amigo. Primeiro, porque ainda não tenho intenção de começar a esperar a morte e escrever a autobiografia á prenúncio do encontro com a Magra... Segundo, porque ainda pretendo realizar algumas coisas e, ao fazer um livro sobre minha vida, ao chegar ao fim, estaria sacramentando também um fim de ideais e de sonhos. Ainda é cedo para isso, penso e espero eu.

Depois, pedir a um romancista que não escreva mentiras é o mesmo que lhe pedir que não escrever uma linha sequer. Minha obrigação como escritor é fazer com que o leitor, no mínimo, compactue com as mentiras postas nas páginas do livro. Além do mais, que graça teria um romance que não contasse algumas boas mentiras?

Está certo... Haverá quem diga que uma autobiografia não é um romance. Porém, sem alguma ficção, que graça ela teria? Seria um texto plano, retilíneo, sem atrativos.

Esse jantar foi há quase quatro anos. E, na verdade, o Troyko estava certo, pelo menos em parte. Hoje, a tendência dos grandes romancistas, como por exemplo, Coetzee, é o que os críticos chamam de autoficção. Ou seja, contar uma história misturando-a com sua autobiografia. Em resumo, o bom amigo Troyko estava antevendo uma tendência quatro anos atrás.

Começo a pensar seriamente nisso, apesar de já ter posto, em alguns de meus romances, alguma coisa sobre minha vida.

De mais a mais, quanto a temer a visita da Magra, já começo a me conformar. Este ano que passou, 2010, foi muitíssimo duro e pesado para mim. Comecei esse ano andando normalmente e termino-o de muletas e cadeira de rodas. Também a antiga disposição para escrever arrefeceu e muito, mesmo porque não consigo ficar nem mesmo meia hora diante do computador. As dores da polineuropatia diabética não o permitem.

Quem sabe se tentar romancear minha vida, criar um personagem que seja meu alter ego, não me entusiasme novamente?

Claro que há episódios que só poderiam ser vividos por esse personagem misto de mim e de um super-herói. Em outros, eu teria de esconder certas características que tornariam as pessoas – outros personagens – facilmente reconhecíveis e isso será totalmente desaconselhável.

Porém, refletindo sobre tudo isso nas minhas tristes horas de dor e insônia, chego à conclusão que sim, que vale a pena arriscar. E que tenho eu a perder? Que mais tenho a realizar nesta vida, preso que estou às minhas precárias condições físicas?

Hoje pela manhã, neste início de 2011 que, espero, seja melhor, tomei a decisão: vou escrever essa autobiografia.

Mas não espere o Troyko que ela venha a ser como me aconselhou, sem mentiras. Terá de havê-las. Mas prometo que vou colocá-las de uma forma tal que o leitor não consiga perceber que são mentiras. Talvez esse seja o melhor livro que jamais escrevi. Talvez seja o pior. Não tem importância. O que interessa é que nele hei de abrir alma. Quem me conhece saberá distinguir pelo menos alguma coisa do que é verdade e do que não é.

Mas será o livro de minha vida.

A despeito de a Magra já estar começando a rondar a minha casa...

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