28 maio 2011

O legado eterno

O que dizer, Antônio? Simplesmente, nada! Não é possível, nesta pobre linguagem que nos foi legada como meio de comunicação, tecer qualquer comentário ao seu maravilhoso texto. Aliás, eu sempre soube que esse dia haveria de chegar. O momento em que, após ler o que você escreveu, que daria mudo, estupefato, os pensamentos perdidos em recordações, em lembranças de uma infância que até então julgava apenas minha e que, de repente, via invadida, compartilhada com outra pessoa. Incrivelmente 31 anos mais jovem.

Não fui somente eu a crescer com uma árvore plantada do dia do nascimento. No meu caso, também uma goiabeira. Certo que a cidade era outra, mas a essência da coisa foi a mesma e quem a plantou também era uma avó e eu passei, como você, boa parte da infância pendurado em seus galhos, comendo goiabinhas ainda verdolengas – as maduras, invariavelmente estavam cheias de bichos – e observando um ninho de sanhaço sem jamais apontar o dedo para os filhotes, pois segundo a Juta (minha avó), se eu fizesse isso as formigas descobririam onde estavam os passarinhos e viriam comê-los vivos.

Eu não tive com quem dividir a minha goiabeira, naquela época. Não tinha irmãos ou primos que viessem trepar em seus galhos junto comigo e minha avó – a grande companheira de traquinagens – já se queixava de dores reumáticas que a impossibilitavam de aventuras mais ousadas.

Morávamos numa chácara – ainda existiam coisas assim! – quase no centro de Taubaté, que ocupava todo um quarteirão. Minha avó, fanática por plantas e tudo que se relacionasse c om terra, desde plantas ornamentais até hortaliças e árvores frutíferas, passando naturalmente por galinhas, patos e até porquinhos, cuidava de tudo pessoalmente. Lembro-me de minha mãe lhe dizendo que ela procurava sarna para se coçar, tanto trabalho ela tinha com sua horta, com o jardim, com o galinheiro e o chiqueiro onde sempre havia pelo menos uma porca parida, um cachaço e dois ou três capados cevando. Juta tinha um empregado, o Sebastião, apenas para fazer o trabalho mais pesado. O resto ficava por conta dela mesma. E era muita coisa: tirar as ervas daninhas da horta e do jardim, cuidar das sementeiras, plantar as mudinhas, desbastá-las, amarrar os tomateiros, cuidar da cobertura de material orgânico, dar milho às galinhas, colher os ovos, cuidar para que algumas pudessem chocar seus pintainhos, dar comida aos porcos, ordenhar a cabra... Lembro-me até hoje do dia em que ela queria que meu pai trouxesse da fazenda uma vaca com seu bezerro para que ela pudesse me dar leite todas as manhãs. Essa sua ideia despertou uma discussão homérica, pois minha mãe não permitiu em hipótese alguma. Vencida, minha avó teve de se contentar com uma cabra leiteira e, assim, fui criado a leite de cabra. Muito bom por sinal.

A festa ficava sempre para as horas de colheita, quando ao almoço, Juta punha na mesa o prataço de salada, as abobrinhas recheadas, a couve mineira picada tão fininho que parecia cabelo verde, as sobremesas feitas com frutas de nosso próprio plantio e queijo de cabra.
Inegavelmente, paladares que só encontramos na saudade...

Diferentemente de sua avó Loli, a minha, Juta, não se incomodava muito com flores. Ela queria mais as coisas que pudessem ser postas à mesa.

Nem por causa disso, o jardim era descuidado, havia canteiros de rosas, de marias-sem-vergonha, de cravos, de agapantos, de palmas... Lembro-me de uma arvorezinha que dava flores amarelas e que tinham um nome engraçado: fedegosas.

Juta não me ensinou subversão – ela era extremamente “caxias" – mas contava-me sobre seu tempo de menina em Portugal, depois na Amazônia, no Rio de Janeiro e, por fim, em São Paulo. Sempre estranhei o fato de ela se calar quando estava me contando essas histórias, à chegada de minha mãe. Principalmente quando o assunto era a Amazônia. Muito tempo depois, vim a descobrir o motivo dessas suas bruscas interrupções da narrativas: quando jovem, Juta era bem “da pá virada” e montara, em Manaus, uma “casa de facilidades”, chamando a irmã, Celeste, para vir administrá-la. E minha mãe achava – talvez até com razão – que essas coisas não eram para “menino escutar”...

Não sei que fim levou a minha goiabeira. Hoje, onde era a nossa chácara, há uma escola, um supermercado e uma porção de casas pequenas. O quarteirão murado que a constituía foi picado, mutilado, as árvores em sua imensa maioria derrubadas para dar lugar a áreas cimentadas e a ocupantes barulhentos e preocupados apenas com o “habitar”, sem o menor tempo para o “usufruir”.

Não tive tempo e nem meios para dar à minha primeira neta uma árvore, uma goiabeira. Mas enterrei seu umbigo numa fazendinha em Gonçalves, no Sul de Minas Gerais, para que ela permanecesse ligada à terra e que, um dia, pudesse sentir o mesmo prazer que eu e sua avó sentimos com o cheiro de um curral, de um silo de café. Ah, o cheiro do café em grão, recém-ensacado e armazenado...!

A neta, Caroline, há de se lembrar, quando for adulta, das caminhadas que fez em companhia da avó, Nicole, pelas trilhas da Serra da Mantiqueira, dos morangos silvestres, das goiabas no meio do mato, do mugido das vacas e do leite que ela tomava todos os dias, recém-tirado da vaca, ainda morno e gordo... Leite de verdade, sem químicas, sem antibióticos. Ela há de recordar com saudade das comidas preparadas no fogão a lenha, das lingüiças penduradas no varal sobre esse fogão, com gosto de carne de porco autêntica e aquele saborzinho de fumaça que só a defumação caseira consegue dar.

E, assim, apesar de a Caroline não ter ganhado uma goiabeira ao nascer, ela terá do que lembrar. E quando o seu neto vier ao mundo e tiver tamanho para conversar com ela através da escrita – como tenho feito com você – os dois terão o que se dizer, terão recordações para partilhar. E nós, os avós, teremos a deliciosa sensação do dever cumprido, de termos legado à nossa descendência alguma coisa mais do que simplesmente matéria: a memória.

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28 maio 2011

O legado eterno

O que dizer, Antônio? Simplesmente, nada! Não é possível, nesta pobre linguagem que nos foi legada como meio de comunicação, tecer qualquer comentário ao seu maravilhoso texto. Aliás, eu sempre soube que esse dia haveria de chegar. O momento em que, após ler o que você escreveu, que daria mudo, estupefato, os pensamentos perdidos em recordações, em lembranças de uma infância que até então julgava apenas minha e que, de repente, via invadida, compartilhada com outra pessoa. Incrivelmente 31 anos mais jovem.

Não fui somente eu a crescer com uma árvore plantada do dia do nascimento. No meu caso, também uma goiabeira. Certo que a cidade era outra, mas a essência da coisa foi a mesma e quem a plantou também era uma avó e eu passei, como você, boa parte da infância pendurado em seus galhos, comendo goiabinhas ainda verdolengas – as maduras, invariavelmente estavam cheias de bichos – e observando um ninho de sanhaço sem jamais apontar o dedo para os filhotes, pois segundo a Juta (minha avó), se eu fizesse isso as formigas descobririam onde estavam os passarinhos e viriam comê-los vivos.

Eu não tive com quem dividir a minha goiabeira, naquela época. Não tinha irmãos ou primos que viessem trepar em seus galhos junto comigo e minha avó – a grande companheira de traquinagens – já se queixava de dores reumáticas que a impossibilitavam de aventuras mais ousadas.

Morávamos numa chácara – ainda existiam coisas assim! – quase no centro de Taubaté, que ocupava todo um quarteirão. Minha avó, fanática por plantas e tudo que se relacionasse c om terra, desde plantas ornamentais até hortaliças e árvores frutíferas, passando naturalmente por galinhas, patos e até porquinhos, cuidava de tudo pessoalmente. Lembro-me de minha mãe lhe dizendo que ela procurava sarna para se coçar, tanto trabalho ela tinha com sua horta, com o jardim, com o galinheiro e o chiqueiro onde sempre havia pelo menos uma porca parida, um cachaço e dois ou três capados cevando. Juta tinha um empregado, o Sebastião, apenas para fazer o trabalho mais pesado. O resto ficava por conta dela mesma. E era muita coisa: tirar as ervas daninhas da horta e do jardim, cuidar das sementeiras, plantar as mudinhas, desbastá-las, amarrar os tomateiros, cuidar da cobertura de material orgânico, dar milho às galinhas, colher os ovos, cuidar para que algumas pudessem chocar seus pintainhos, dar comida aos porcos, ordenhar a cabra... Lembro-me até hoje do dia em que ela queria que meu pai trouxesse da fazenda uma vaca com seu bezerro para que ela pudesse me dar leite todas as manhãs. Essa sua ideia despertou uma discussão homérica, pois minha mãe não permitiu em hipótese alguma. Vencida, minha avó teve de se contentar com uma cabra leiteira e, assim, fui criado a leite de cabra. Muito bom por sinal.

A festa ficava sempre para as horas de colheita, quando ao almoço, Juta punha na mesa o prataço de salada, as abobrinhas recheadas, a couve mineira picada tão fininho que parecia cabelo verde, as sobremesas feitas com frutas de nosso próprio plantio e queijo de cabra.
Inegavelmente, paladares que só encontramos na saudade...

Diferentemente de sua avó Loli, a minha, Juta, não se incomodava muito com flores. Ela queria mais as coisas que pudessem ser postas à mesa.

Nem por causa disso, o jardim era descuidado, havia canteiros de rosas, de marias-sem-vergonha, de cravos, de agapantos, de palmas... Lembro-me de uma arvorezinha que dava flores amarelas e que tinham um nome engraçado: fedegosas.

Juta não me ensinou subversão – ela era extremamente “caxias" – mas contava-me sobre seu tempo de menina em Portugal, depois na Amazônia, no Rio de Janeiro e, por fim, em São Paulo. Sempre estranhei o fato de ela se calar quando estava me contando essas histórias, à chegada de minha mãe. Principalmente quando o assunto era a Amazônia. Muito tempo depois, vim a descobrir o motivo dessas suas bruscas interrupções da narrativas: quando jovem, Juta era bem “da pá virada” e montara, em Manaus, uma “casa de facilidades”, chamando a irmã, Celeste, para vir administrá-la. E minha mãe achava – talvez até com razão – que essas coisas não eram para “menino escutar”...

Não sei que fim levou a minha goiabeira. Hoje, onde era a nossa chácara, há uma escola, um supermercado e uma porção de casas pequenas. O quarteirão murado que a constituía foi picado, mutilado, as árvores em sua imensa maioria derrubadas para dar lugar a áreas cimentadas e a ocupantes barulhentos e preocupados apenas com o “habitar”, sem o menor tempo para o “usufruir”.

Não tive tempo e nem meios para dar à minha primeira neta uma árvore, uma goiabeira. Mas enterrei seu umbigo numa fazendinha em Gonçalves, no Sul de Minas Gerais, para que ela permanecesse ligada à terra e que, um dia, pudesse sentir o mesmo prazer que eu e sua avó sentimos com o cheiro de um curral, de um silo de café. Ah, o cheiro do café em grão, recém-ensacado e armazenado...!

A neta, Caroline, há de se lembrar, quando for adulta, das caminhadas que fez em companhia da avó, Nicole, pelas trilhas da Serra da Mantiqueira, dos morangos silvestres, das goiabas no meio do mato, do mugido das vacas e do leite que ela tomava todos os dias, recém-tirado da vaca, ainda morno e gordo... Leite de verdade, sem químicas, sem antibióticos. Ela há de recordar com saudade das comidas preparadas no fogão a lenha, das lingüiças penduradas no varal sobre esse fogão, com gosto de carne de porco autêntica e aquele saborzinho de fumaça que só a defumação caseira consegue dar.

E, assim, apesar de a Caroline não ter ganhado uma goiabeira ao nascer, ela terá do que lembrar. E quando o seu neto vier ao mundo e tiver tamanho para conversar com ela através da escrita – como tenho feito com você – os dois terão o que se dizer, terão recordações para partilhar. E nós, os avós, teremos a deliciosa sensação do dever cumprido, de termos legado à nossa descendência alguma coisa mais do que simplesmente matéria: a memória.

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