06 setembro 2007

Sobre o Livro Ninguém para me acompanhar, de Nadine Gordimer

Vera Stark, advogada de uma fundação sul-africana cujo objetivo era garantir o acesso dos negros à terra, é a protagonista desta formidável obra de Nadine Gordimer. Sem dúvida, Ninguém para me acompanhar, é um grande romance. Aliás, não se poderia esperar menos desta autora, natural de Springs, na África do Sul, e Prêmio Nobel de Literatura em 1991. Na época em que o regime do apartheid ainda domina a África do Sul, Vera Stark vive as emoções de lutas políticas, de perseguições e de injustiças. Frente a frente com negros e brancos — cada qual defendendo o mais bravamente possível seus pontos de vista e seus interesses — a competente advogada se vê envolvida com funcionários públicos incompetentes e relapsos, com brancos que não conseguem admitir a evolução dos tempos e dos costumes e, principalmente, consigo mesma, confrontando o trabalho que desenvolve e sua vida familiar. A autora aborda com muita propriedade temas até mesmo já muito batidos sobre a segregação racial e o racismo propriamente dito, vigentes não apenas naquele país, mas em todo o mundo. E, para surpresa de todos, Nadine Gordimer mostra a faceta humana — evidentemente cheia de falhas — de todos os personagens que povoam sua obra. Assim, a própria Vera Stark, por seu comportamento e atitudes, não esconde em momento algum o alto grau de egoísmo que possui. Está certo que ela trabalha por uma nobre causa, dedica-se ao extremo, até mesmo extrapola suas obrigações em muitas oportunidades — numa delas, chega a ser baleada — mas tudo isso é apenas conseqüência do que ela mesma se propôs a fazer. Tanto está trabalhando pelos negros e pela conquista de seus direitos, quanto poderia estar trabalhando com o mesmo ímpeto e a mesma dedicação, numa empresa de seguros contra incêndios. Falta-lhe o idealismo quase que religioso que tão bem caracteriza os que realmente se dedicam a uma causa, como se fosse a razão única de sua vida. A razão única da vida de Vera Stark parece ser tão-somente a sua realização profissional, a consciência de ter feito bem o seu trabalho, de não ser obrigada a escutar críticas de espécie nenhuma. Ou seja, falta-lhe viver com a alma os problemas dos negros que a procuram na Fundação, ao invés de vivenciá-los como uma autêntica burocrata o faz. Está aí a grande diferença entre ela e um de seus amigos, Didymus, ex-exilado e verdadeiro idealista — ou pelo menos o foi, durante o tempo em que se viu perseguido e ameaçado — dedicado apenas à libertação de seu povo, ainda que essa dedicação não conseguisse ser convenientemente dogmatizada ou normatizada. A esposa de Didymus, uma negra bonita e desempenada chamada Sibongile, é utilizada pela autora para exemplificar o fenômeno da subida à cabeça, ou seja, a embriaguez do poder e da própria glória. Sibongile, negra e sofrida durante os tempos de exílio, acaba por sofrer a influência da cultura européia branca e passa a ser exigente: não se adapta mais às condições de vida de seu povo quando de seu retorno à África do Sul, quer que a filha, Mpho, receba educação em nível de Primeiro Mundo, quer mostrar que é mais do que qualquer outro. Está certo que todos deveriam ter esses direitos, mas também é certo que não se sai da submissão para o domínio, sem sacrifícios ou mesmo, sem uma convulsão social e violência. E há violência no livro de Nadine Gordimer. Em doses certas, nos momentos certos, violência descrita com o cuidado de evitar o exagero. Tanto cuidado que a autora deixa de resolver a personagem Sibongile, posta numa lista negra da direita conservadora branca, deixando o leitor sem saber o que, afinal de contas, aconteceu com ela. O mesmo cuidado em poupar o leitor da violência sangrenta, Nadine Gordimer não tem com o que se refere a sexo. O livro é recheado de sexo — muitas vezes quase explícito — do começo ao fim. Há um componente de provável arrependimento por parte de Vera Stark por ter se divorciado muito jovem, arrependimento este que se pressente quando ela tem uma aventura amorosa com um alemão mais jovem. Nadine, certamente, quis mostrar que seus personagens são, de fato, pessoas normais, iguais a quaisquer outras, portanto sujeitas às fraquezas e aos problemas de todos os mortais comuns. Dessa maneira, Vera Stark se vê às voltas com o divórcio do filho, com o lesbianismo da filha e com o excesso de juventude — não apenas excessos da juventude — do neto. A advogada nutre um sentimento de profunda admiração, talvez até mesmo um amor platônico, amor não resolvido, por Zeph Rapulana, líder de uma township e que se transforma numa importante figura envolvida com a nacionalização de bancos e financeiras. Zeph é uma espécie de guru de Vera Stark, um sábio, quase um avatar, capaz de aconselhá-la e até mesmo de ditar regras e normas, mostrar caminhos e soluções. Vera acaba deixando o marido — o segundo, pai de seus filhos — para viver praticamente sob o teto de Zeph. Porém, não há aí nenhuma conotação sexual, ao menos do ponto de vista consciente por parte da advogada: ela apenas sente a necessidade de compartilhar com alguém sua dedicação ao trabalho, faceta de sua personalidade que, aparentemente, não tinha sido compreendida por seus familiares. E o empowerment acaba fazendo com que Rapulana passe a fazer parte do mesmo nível social de Vera, com direito a freqüentar plenamente e com segurança, a sociedade dos brancos. A autora enfoca magistralmente — e sem cansar o leitor — as manobras políticas dos brancos para provar que os negros, ainda que detendo parte significativa do poder, não terão jamais possibilidade de se desenvolver. Uma das maneiras é possibilitar acesso, por exemplo, ao controle financeiro, mas sem lhes proporcionar o know-how necessário. O fracasso, inevitável, é tomado por incompetência absoluta. Diga-se de passagem que esta é uma manobra de política suja que, de maneira nenhuma, pode ser considerada como exclusividade da África do Sul.

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06 setembro 2007

Sobre o Livro Ninguém para me acompanhar, de Nadine Gordimer

Vera Stark, advogada de uma fundação sul-africana cujo objetivo era garantir o acesso dos negros à terra, é a protagonista desta formidável obra de Nadine Gordimer. Sem dúvida, Ninguém para me acompanhar, é um grande romance. Aliás, não se poderia esperar menos desta autora, natural de Springs, na África do Sul, e Prêmio Nobel de Literatura em 1991. Na época em que o regime do apartheid ainda domina a África do Sul, Vera Stark vive as emoções de lutas políticas, de perseguições e de injustiças. Frente a frente com negros e brancos — cada qual defendendo o mais bravamente possível seus pontos de vista e seus interesses — a competente advogada se vê envolvida com funcionários públicos incompetentes e relapsos, com brancos que não conseguem admitir a evolução dos tempos e dos costumes e, principalmente, consigo mesma, confrontando o trabalho que desenvolve e sua vida familiar. A autora aborda com muita propriedade temas até mesmo já muito batidos sobre a segregação racial e o racismo propriamente dito, vigentes não apenas naquele país, mas em todo o mundo. E, para surpresa de todos, Nadine Gordimer mostra a faceta humana — evidentemente cheia de falhas — de todos os personagens que povoam sua obra. Assim, a própria Vera Stark, por seu comportamento e atitudes, não esconde em momento algum o alto grau de egoísmo que possui. Está certo que ela trabalha por uma nobre causa, dedica-se ao extremo, até mesmo extrapola suas obrigações em muitas oportunidades — numa delas, chega a ser baleada — mas tudo isso é apenas conseqüência do que ela mesma se propôs a fazer. Tanto está trabalhando pelos negros e pela conquista de seus direitos, quanto poderia estar trabalhando com o mesmo ímpeto e a mesma dedicação, numa empresa de seguros contra incêndios. Falta-lhe o idealismo quase que religioso que tão bem caracteriza os que realmente se dedicam a uma causa, como se fosse a razão única de sua vida. A razão única da vida de Vera Stark parece ser tão-somente a sua realização profissional, a consciência de ter feito bem o seu trabalho, de não ser obrigada a escutar críticas de espécie nenhuma. Ou seja, falta-lhe viver com a alma os problemas dos negros que a procuram na Fundação, ao invés de vivenciá-los como uma autêntica burocrata o faz. Está aí a grande diferença entre ela e um de seus amigos, Didymus, ex-exilado e verdadeiro idealista — ou pelo menos o foi, durante o tempo em que se viu perseguido e ameaçado — dedicado apenas à libertação de seu povo, ainda que essa dedicação não conseguisse ser convenientemente dogmatizada ou normatizada. A esposa de Didymus, uma negra bonita e desempenada chamada Sibongile, é utilizada pela autora para exemplificar o fenômeno da subida à cabeça, ou seja, a embriaguez do poder e da própria glória. Sibongile, negra e sofrida durante os tempos de exílio, acaba por sofrer a influência da cultura européia branca e passa a ser exigente: não se adapta mais às condições de vida de seu povo quando de seu retorno à África do Sul, quer que a filha, Mpho, receba educação em nível de Primeiro Mundo, quer mostrar que é mais do que qualquer outro. Está certo que todos deveriam ter esses direitos, mas também é certo que não se sai da submissão para o domínio, sem sacrifícios ou mesmo, sem uma convulsão social e violência. E há violência no livro de Nadine Gordimer. Em doses certas, nos momentos certos, violência descrita com o cuidado de evitar o exagero. Tanto cuidado que a autora deixa de resolver a personagem Sibongile, posta numa lista negra da direita conservadora branca, deixando o leitor sem saber o que, afinal de contas, aconteceu com ela. O mesmo cuidado em poupar o leitor da violência sangrenta, Nadine Gordimer não tem com o que se refere a sexo. O livro é recheado de sexo — muitas vezes quase explícito — do começo ao fim. Há um componente de provável arrependimento por parte de Vera Stark por ter se divorciado muito jovem, arrependimento este que se pressente quando ela tem uma aventura amorosa com um alemão mais jovem. Nadine, certamente, quis mostrar que seus personagens são, de fato, pessoas normais, iguais a quaisquer outras, portanto sujeitas às fraquezas e aos problemas de todos os mortais comuns. Dessa maneira, Vera Stark se vê às voltas com o divórcio do filho, com o lesbianismo da filha e com o excesso de juventude — não apenas excessos da juventude — do neto. A advogada nutre um sentimento de profunda admiração, talvez até mesmo um amor platônico, amor não resolvido, por Zeph Rapulana, líder de uma township e que se transforma numa importante figura envolvida com a nacionalização de bancos e financeiras. Zeph é uma espécie de guru de Vera Stark, um sábio, quase um avatar, capaz de aconselhá-la e até mesmo de ditar regras e normas, mostrar caminhos e soluções. Vera acaba deixando o marido — o segundo, pai de seus filhos — para viver praticamente sob o teto de Zeph. Porém, não há aí nenhuma conotação sexual, ao menos do ponto de vista consciente por parte da advogada: ela apenas sente a necessidade de compartilhar com alguém sua dedicação ao trabalho, faceta de sua personalidade que, aparentemente, não tinha sido compreendida por seus familiares. E o empowerment acaba fazendo com que Rapulana passe a fazer parte do mesmo nível social de Vera, com direito a freqüentar plenamente e com segurança, a sociedade dos brancos. A autora enfoca magistralmente — e sem cansar o leitor — as manobras políticas dos brancos para provar que os negros, ainda que detendo parte significativa do poder, não terão jamais possibilidade de se desenvolver. Uma das maneiras é possibilitar acesso, por exemplo, ao controle financeiro, mas sem lhes proporcionar o know-how necessário. O fracasso, inevitável, é tomado por incompetência absoluta. Diga-se de passagem que esta é uma manobra de política suja que, de maneira nenhuma, pode ser considerada como exclusividade da África do Sul.

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